Nação Zumbi celebra seu disco de estréia

O grande combo recifense convidou os conterrâneos dos Devotos e Maciel Salú, pra festa do álbum "Da lama ao caos"

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Texto Matias Carsolio - Fotos Raíssa Corrêa

11/2/202511 min read

Modernizar o passado é uma evolução musical. Organizar o passado, também, organizar pra desorganizar, desorganizar para organizar, o caos. Faz 30/31 anos o Brasil viu nascer um ponto de quebra, uma nova estrutura musical e cultural que não deixaria pedra sobre pedra, que não estagnaria nunca e seria um movimento mutante em constante evolução. Estamos falando de Chico Science e Nação Zumbi, estamos falando do disco Da Lama Ao Caos. Que em 2024 fez 30 anos de seu lançamento e isto foi e está sendo celebrado com uma tour da banda Nação Zumbi, que no dia 25 de outubro de 2025 pousou na Audio, uma das melhores casas de shows de São Paulo.

Nação Zumbi é uma entidade, é muito além dos integrantes da banda ou da música plasmada em seus discos, eles são uma corrente inquebrável de energia criativa que contagia todas as pessoas que se aproximam dela, não importa se você é, artista plástico, músico, motoboy, atendente de loja, pedreiro, advogado ou vereador, se a pessoa estiver com as antenas bem postas e encostar nessa corrente, a energia que esta entidade carrega mudará a percepção da vida para este indivíduo. Não se trata só de uma banda, se trata de um estilo de vida que se acopla ao estilo da pessoa, e passa a fazer parte de sua bagagem cultural, pra sempre. Não é exagero, não é bajulação, não sou nem sequer eu mesmo que estou dizendo isso, é um fato, pois se hoje em dia pegamos este álbum, Da Lama ao Caos, veremos, sentiremos, leremos e escutaremos algo que pode muito bem, ter sido escrito hoje, ou faz trinta anos, ou daqui a 30 anos, é uma obra sem tempo nem espaço, sem amarras nem armadilhas, é uma obra completa em si mesma e ao mesmo tempo aberta a todo tipo de interpretações, seja esta feita por músicos, jornalistas, artistas ou motoboys, é o caos, no seu mais positivo sentido de ser.

Os caranguejos com cérebro desembarcaram em São Paulo mais uma vez, para nos demonstrar porquê estão ainda na ativa, porquê continuarão por todo o sempre reverberando esta energia, acompanhados de uma abertura incendiária de seus companheiros de estrada, luta e mangue, Devotos. Uma banda punk hardcore nascida no Alto José do Pinho, bairro na zona norte de Recife, um bairro que carrega uma forte identidade cultural da cidade e têm na banda Devotos, que inclusive foi declarada patrimônio cultural imaterial da cidade, um dos seus principais expoentes. Nos brindaram um show poderosíssimo e sincero, tocando músicas de suas diferentes fases, assim nos levando por vários momentos e ritmos em seu caldeirão musical rico e diverso. Embaixadores do Hardcore pernambucano, referência na cena nacional, que vinha de levar seu som por terras européias, tocaram aproximadamente durante uma hora, sem deixar a peteca cair, cadenciando o hardcore, com momentos de reggae, metal, e inclusive uns momentos de rap (com uma homenagem maravilhosa a Chico Science), foram a banda perfeita pra abrir esta maravilhosa noite.

Mas enfim, comecemos, Da lama ao Caos:

Monólogo ao pé do ouvido. Os trovões retumbam com o som suave de uma melodia ao berimbau eletrificado, as palavras ressoam como um chamado para a ação, são instruções que nos aconselham para o que virá, com referências de líderes inspiradores e frases certeiras que mostram que o caminho da revolução é dado por nos mesmos, e essa revolução é dançante, é equalizada, é colorida.

Banditismo por uma questão de classe. Enquanto o berimbau elétrico se desmancha no ar, a percussão inquieta começa a chacoalhar nossos esqueletos com o baixo groovando para temperar as novas frases, que nos falam de um assunto tão perene quanto o ar pesado da cidade grande. A injustiça presente no dia a dia, o loop histórico que nos persegue desde a mais temprana idade da América Latina como um todo, os bandidos que se criam por necessidade e os bandidos que nascem criados por outros bandidos que todo dia roubam apadrinhados por outros bandidos disfarçados de santos.

Rios, pontes e overdrives. A percussão se mistura com loops e colagens e volta o baixo com seu groove hipnótico, os ritmos entram com o peso de mil histórias contadas desde quando a cidade de Recife, que antes era lama, era mangue, cortada por seis rios, construiu os alicerces do que viria a ser esse ar pesado da metrópole, com suas impressionantes esculturas de lama, com esse monte de molambo que caiu lá no calçamento em pleno sol do meio dia e o carro passou por cima. O público repetia como um mantra “mangue mangue mangue mangue”

A cidade. As colagens dão o clima que adentram a um ritmo calejado do sol, do sol do cimento, do que foi construído anos, décadas atras, e foi vendido como uma idéia genial, como o progresso, como o que viria a ser um lar para todos e todas. A guitarra com seu loop de caminhada nesse sol de cimento, que ilumina as pedras evoluídas, os gigantes monolitos, que deveriam ser nosso lar, mas não são. Esta música é uma caminhada observando o que aquela promessa de progresso se tornou, o que foi aterrado, os ecossistemas que foram devastados em nome dessa esdrúxula idéia de cidade, de metrópole, do nosso lar, que deveria ser de todos e todas, mas não é, nem de longe, pois o de cima sobe e o de baixo desce. Dançar é um bom remédio, e é isso que fazemos, cantando, sorrindo, mas também, pensando.

A praieira. Há fronteiras no jardim da razão, há descanso até pro mais feroz dos guerreiros, e esse guerreiro deve sempre ter em mente quando esta hora chega. Uma dança na areia, bem onde ela se encontra com o mar, indo e voltando, às vezes seca e logo depois molhada, poder desfrutar desse momento efêmero depois de ter pensado e tramado tanto, de ter carregado todo o peso das palavras que guiam mentes abertas para este novo pensamento. Sim, hora de tomar uma cerveja, claro, hora de festejar, hora da leveza, hora dessa pausa, sempre lembrando a revolução. Esta música foi cantada em uníssono por todo o público ali presente, que sabia que ali estávamos também celebrando.

Samba Makossa. E o ritmo fica frenético, imparável, os passos se agitam e a dança é interminável e alegre, é hora de celebrar, continuar o que foi dito na música anterior mas já sabendo que a responsabilidade está presente, devemos entrar na roda, segurando a onda do que temos que fazer, das nossas escolhas, sejam pra bem ou pra mal, por isso, é um samba da pesada, é sem hora marcada, e temos que segurar o ritmo, sempre bons da cabeça e com foguete no pé, samba samba samba samba samba samba.

Da lama ao caos. Neste momento o show parte para o lado b, quando viramos o disco e a agulha faz soar o peso mais absurdo de todos os pesos. Destaco o trabalho impecável de Neilton Carvalho, guitarrista que assumiu desde 2023 (e também é guitarrista do Devotos, muito respeito por pessoas que tocam em duas bandas na mesma noite). Antes da música em si começar, ele fez soar sua guitarra como um trovão que anunciava esta tonelada sonora, que é a música Da lama ao caos. Um dos grandes trunfos do Nação, pra mim, é a capacidade visual que eles conseguem imprimir em cada música, o clima que conseguem criar encima de cada letra, que deixa tudo muito completo, e esta aqui, pra mim, representa o marco de tudo isto. Devería ser tocada em alto volume pelas ruas de todas as cidades do Brasil, e quando digo em alto volume, não digo de forma figurativa, pois ela possui em si, essa vontade, não pode de maneira alguma ser escutada em volume baixo, pois o volume faz parte dela, faz parte do seu peso, faz parte de sua letra. Ela é lúgubre, misteriosa, com muitas referências locais e com uma mensagem poderosíssima, que todos e todas deveríamos lembrar, “um homem roubado nunca se engana”, essa mensagem que parece que foi esquecida no Brasil e deve ser revisitada sempre, para que quando a miséria bater na nossa porta, não nos deixemos intimidar pelos urubus que cada vez mais incisivamente aparecem, para que na hora que consigamos aquela cenoura que precisamos e queremos, não passe ninguém e nos roube, pois com a barriga, a mente, a vida vazia, ninguém pode dormir.

Maracatu de tiro certeiro. Quando digo que o tempo não afeta a entidade Nação Zumbi, é quando, como disse no começo deste texto, penso que cada música poderia ter sido escrita hoje e faria sentido, e esta aqui é um claro exemplo. Com sua guitarra cortante e seu jeito grooverap de ser cantada, ela escancara a violência do nosso país de um jeito muito, muito brasileiro, ela musicaliza cada cena bizarra que presenciamos nas ruas ou nas telas, e nos leva a pensar de que jeito encaramos isso. Quem sou eu nesta cena toda? O que é de barro e ao toque de um tiro certeiro se quebra, ou dos que conseguem abrir os olhos e no outro dia assistir tv? Dos que ficam pensando sobre como as coisas são e querem fazer algo a respeito, ou dos que enfiam a cara na telinha tátil?

Salustiano Song. Para esta música, hipnótica e aberta a improvisos e somas tanto musicais como visuais, foi chamado ao palco Maciel Salú, para tocar rabeca e também um dançarino com um maravilhoso traje inspirado no personagem Caboclo do maracatu, com toques cyberdélicos, cores flúor que atenuaram ainda mais a vestimenta. Esta música durou mais do que no disco, pois com as intervenções da rabeca foi sendo levada mais para um ritual. Ela funciona no disco como um prelúdio da despedida do mesmo, mas aqui ela teve um toque de respiro, pois teríamos muito mais show pela frente.

Antene-se. Sou sou sou, Mangueboy! Pois na quarta pior cidade do mundo, o mangue é insurreição, o mangue que foi aterrado e sepultado volta em forma de som/cor/cheiro/dança e faz nascer os novos homens caranguejos, que com suas antenas equilibradas encima do corpo, procuram captar, antenar, preocupar, boa vibração e diversão. Sou sou sou! cantado por todo o público ali presente como som de bombas caindo no chão e espalhando essa boa vibração. Estamos chegando ao fim do disco, mas não do show, e devemos sempre lembrar como captar essa boa vibração. Antes de passar pra próxima música, gostaria de mencionar, que desde sempre achei o sample de Kraftwerk uma sacada espetacular. Onde o mangue encontra a Radio Activity.

Risoflora. O caranguejo sai do mangue para encontrar sua cara-metade, seu amor eterno, sua manguegirl. A única música romântica do disco é tão bela e tão suave, que não podia se encontrar em lugar melhor que no finalzinho, para deixar no ar sua suavidade e sua ternura. Muito foi falado sobre esta música, mas pelo que se sabe, ela foi escrita pra uma namorada do Chico, que em meio da sua letra faz referências ao lugar onde a conheceu. Quando perguntado sobre pra quem ela foi escrita, ele respondia “para todas as manguegirls” E assim sendo, e como toda boa música romântica, é a que te leva pra aquele lugar tão maravilhoso, aquele que todos e todas temos. Seja onde for, seja com quem for, assim como aquele tempo da dança na beira do mar, todo guerreiro ou guerreira têm sua Risoflora.

Lixo do Mangue/ Computadores fazem arte/ Coco dub. A psicodelia volta com tudo, mostrando que a evolução e a continuação estavam ali no virar da página, na próxima esquina. No lixo, no resto, naquilo que é descartado nasce uma nova forma, uma nova escultura de lama, orgânica e viva. A percussão toma conta, o ritmo tribal, o calor do lugar, o calor humano. A Cada batida que hipnotiza e leva conforto às nossas mentes. O humor é genial quando reflete sobre algo real e o torna mais ameno, engraçado. O humor é ainda mais genial quando percebe algo que está acontecendo bem embaixo dos nossos narizes mas ninguém vê. Pois foi assim que o genial Chico Science percebeu o que pouca gente percebia naquele ano de 1994, a comunhão que estava se formando entre máquinas e humanos, e com um toque de humor ele parafraseou o que era vivido naquela época (o sample do Kraftwerk é duplamente genial) e seria amplificado enormemente nos anos a seguir até o dia de hoje. É bom? é ruim? Estamos indo pro fundo do poço? Estamos chagando ao nível máximo de evolução que um primata pode chegar? Não sei, longe de saber algo, mas sei que este caranguejo com cérebro percebia as coisas além do que podemos ver e ouvir.

O show termina com uma session fantástica de ritmo e melodia, um show visual psicodélico gráfico tomando conta da casa toda. Cabe dizer que a casa Audio têm um sistema de projeções com painéis de led que são fantásticos e ajudam muito neste tipo de shows, que aqui foram utilizados com maestria pela equipe visual do show. Não só no final, mas em cada música, projeções temáticas passando por todo o sistema da casa, dando um toque visual espetacular durante o show inteiro.

Mas como disse no começo do texto, o Nação Zumbi é uma entidade viva, e como tal, está sempre em evolução, por isso, depois do Lama veio o Afrociberdelia, o Futura, o Radio S.Amb.a, o Fome de tudo, e tantos outros discos que deixaram e deixam sua marca. Muito generosos, eles voltaram para o bis no show, e foi de arrepiar. Começando com Foi de Amor, para dar uma entrada suave ao caldo todo, seguiram Quando a maré encher, Meu maracatu pesa uma tonelada, Manguetown e Maracatu atômico, fechando o palco com a volta do dançarino e do Maciel Samu, somado aos vocais de Canibal, do Devotos.

Encerraram o baile em grande estilo, mostrando que talvez quem sabe, em 2026 tenhamos uma celebração ao Afrociberdelia, será?