Refused: antes tarde do que nunca

Pela primeira e quiçá (última vez) no Brasil

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Texto German Martinez - Fotos Raíssa Corrêa

11/2/20258 min read

Que alguém nos explique como funciona uma devoção á uma banda, um disco, ou algo do tipo, paramos pra analisar o quão não são medidos os esforços pra que você assista sua banda favorita, ou das mais queridas da sua lista, o espectro do "rock", acerca do futebol deve ser o nicho mais devocional da face da terra, mas seríamos nós exagerados na colocação? Talvez sim, talvez não, o que sabemos é que multidões só são arrastadas justamente pela paixão, e no caso do brasileiro em específico, ele tem tido a imensa sorte de ver bandas que jamais imaginaríamos que pisariam por aqui.

Nós nos confrontarmos com essa realidade de vivermos no interior dessa gigante São Paulo, mais precisamente Atibaia, e calha de que as distâncias, horários, atribulações corriqueiras do dia a dia, dificultam que estejamos em inúmeros shows, dos quais a nossa audiência gostaria. Mas sempre que adentramos nessa viagem, procuramos pensar de qual forma a banda em si impacta, seja ela por alguma obra ocasional ou sua performance, e falar sobre o Refused, é um tanto quanto fácil, porque além de ser uma das bandas prediletas da casa, ela permeia por uma história brilhante que é o The Shape Of Punk To Come.

Quando a banda foi anunciada meses atrás, o que brotava no subconsciente era o local que ela deveria se apresentar, se era o merecido pra banda ou pro público. As produtoras Balaclava Records e Powerline, escolheram o Terra SP, como palco dessa apresentação, localizada na zona sul de São Paulo, tendo um bom acesso pro público.A agitação corria solta nas veias dos espectadores porque até então não saberia quem seria os anfitriões da festa, muito se cogitou, mas quem despontou na dianteira foi a banda Eu Serei A Hiena.

Eu Serei a Hiena

O brasileiro se esquece de que a cena é composta de grandes bandas, principalmente no underground, e se pra muitos aquilo era um cartão de visitas, pra outros era a chance de ver amigos no palco ao lado de uma banda que serve ou serviu de referência pra muita coisa. Ainda me lembro da primeira vez que vi a A Hiena em ação, na Sociedade Ìtalo Brasileira, em Bragança Paulista, nos idos de 2009, no magnífico festival Cardápio Underground, naquela ocasião eles se apresentaram como trio, pois Fausto não pôde comparecer. Muitas apresentações veríamos depois, mas aquela nos marcou, foi ali que ouvimos o álbum Hominis Canidae, pela primeira vez, com aquela arte incrível. O som da Hiena, não é convencional e cause estranheza pra muitos que estavam ali.

Em certo momento olhei apenas para o lado direito, onde estavam Juninho e Nino, e pensei 2/3 de uma das bandas mais legais que esse país já teve, era da qual eles faziam parte, que era o Discarga. E como esquecer um currículo de bandas, que todos eles tocaram ou ainda tocam, como Dance Of Days, Self Conviction, Point Of No Return, Rethink, Zander, Bastardo, Ouse Morrer, M.A.C.E., e o maravilhoso Jesus Macaco. Uma parte da história do nosso underground foi vivida e contada por estes 4 indivíduos, que até hoje fazem muita coisa acontecer

REFUSED

Vale lembrar que o David Sandström, montou seu kit no fundo do palco, um pouco mais acima dos companheiros do grupo, e lá Magnus Flagge, com sua "geladeira" Ampeg, também alinhou 2 cabeçotes, com a bandeira da Palestina. Do lado contrário, 2 caixas Marshall com respectivos cabeçotes JCM900 que traziam ainda mais peso pra guitarra Mattias Bärjed, já que Kristoffer havia pulado do barco 5 anos antes, já Dennis usufruía de um microfone adesivado com as cores da Palestina.

Iniciaram com o lirismo ácido e inflamável de Poetry Written in Gasoline, simplesmente pra aquecer os motores. Na sequência executariam a faixa título, e canção tão distinta pra época que foi lançada, e justamente de um disco que quebrou todos os paradigmas do dito "Hardcore", ali eles descordavam de tudo e todos, e foram além nas suas canções, e The Shape Of Punk To Come trouxe esse frescor dos experimentos de efeitos da guitarra de Mattias. Numa levada que parece reta, mas cheia de tempos quebrados The Refused Party Program, foi a primeira a incentivar os gritos no refrão, e fazendo Dennis suar, caminhando de ponta a ponta do palco e jogar o seu microfone como um brinquedo de criança.

O inquieto e performático Dennis, deixava os integrantes entoarem os primeiros acordes de um som de gente grande, eis que viria Rather Be Dead, uma das grandes amostras das influências que eles tinham nos anos 90, que eram as bandas de HC que estavam flertando com o Metal, daí o peso estoante dos riffs desta canção. Desta vez não houve invasão das autoridades políciais da Virgínia, como ocorreu no porão de um dos últimos shows da turnê pelos Estados Unidos, que acabou se tornando definitiva até então.

E quem disse que a galera não estava extasiada, sim e como, os pogos já rolavam, com um pit que atrapalhava os stage dives, eles mesmos davam um jeito de subirem entre as próprias cabeças.

Sob luzes vermelhas sobre a banda, trazendo um ar infernal, a pós punk Malfire, do álbum War Music de 2019, se fez presente ao lado de faixas como REV001 e Economy of Death. Em Liberation Frequency era hora do povo cantar o riff, coisas que não são vistas de forma corriqueira, a guitarra é tão emblemática nesta canção que é impossível não cantarolar por cima das frases do instrumento. O destaque aí vem pro baixista Magnus que graças as suas frases contagiantes fazia a cama pras nuances da guitarra de Mattias em Summerholidays x Punkroutine, até que tudo explodisse como uma granada.

Sabe aquele som que vem no peito, quando o som está pesado, essa era a sensação quando vinham os petardos do palco, é uma vida tocando juntos, mas o que se vê nos 4, é ainda estarem felizes dividir mesmo cenário. São 27 anos do lançamento do The Shape Of Punk To Come, um divisor de águas no cenário sueco e posteriormente mundial. Mas eles não abandonaram nenhum disco da trajetória da banda, e foi daí que elaboraram um setlist dos mais pragmáticos dos últimos tempos. A bateria totalmente agressiva e jazzística de David, convidando todos pra dança da morte na caótica The Deadly Rhythm, que é uma rajada de violência musical.

Era hora de 2 pérolas do espólio antigo da banda, Circle Pit e Burn It, altamente explosivas assim como os seus títulos, na primeira Dennis convida a todos pro meio da pista e na segunda faixa, ele encarna um estilo á la HC Nova York. Uma bateria quase tribal com Economy of Death, e riffs demoníaco de Mattias. A introdução "suingada" de Refused Are Fucking Dead, que não somente é uma das faixas mais interessantes do The Shape..., que virou título do excelente documentário que a banda ganhou, feito pelo ex-guitarrista Kristoffer Steen, contando principalmente o derradeiro fim, há mais de 25 anos atrás, e deve ser visto por todo fã.

O que falar da presença de palco de Dennis Lixzén, que caminhava por todos os cantos do palco, fazia danças, girava e jogava seu microfone, e ia pros cantos do palco pra estampar um grande sorriso e suor. Poucos sabem da trajetória incrível que Dennis tem como músico ativo, tendo formado bandas como a sensacional e política The International Noise Conspiraçy, a pós- punk INVSN, ou ter feito parte da quase contemporânea Final Exit e após a separação do Refused, o AC4.

O poder bélico que a banda possui é algo destruidor, o quão potente é sua performance que quebra todos os esteriótipos do "Hardcore tradicional", seus tempos quebrados, mudanças de andamento, riffs avassaladores, que transformam tudo numa máquina sonora de espremer os seus ouvidos, as colocações cirúrgicas das falas de Dennis sobre o LGBTQIA+, e sobre os imigrantes ao redor do mundo, se fizeram absolutamente necessárias pro atual momento que estamos enfrentando.

Worms Of The Sense/Faculties Of The Skull, já traz as quebradas de tempo que traduzem o que foi álbum The Shape, seguida por uma faixa que facilmente poderia ter sido escrita naquela época, Elektra, trouxe um dos melhores "balanços" da noite. Dennis em suas interações com o público falou da importância da política em nossas vidas, da batalha diária que se deve ter, de se levantar e ir pra batalha, disse também sobre o buraco sem fundo do governo norte americano que limita o mundo de caminhar. Em New Noise, a projeção Free Palestine ao fundo e Dennis se aproximou do pit dos fotógrafos, já que não havia mais ninguém no fosso, e ele foi cantar com a galera, sendo aplaudido de forma extraordinária pela platéia.

Quando voltou já estirado sobre o palco, respirou e agachado como um tigre, entrelaçou o microfone entre os dentes e rastejou até que Tannhäuser/ Derivè, fosse introduzida e acabasse com louvor o set. Com o final apoteótico, a banda ainda pegou discos e setlists pra autografar dos fãs que estavam no gargarejo, e fizeram com sorriso estampado no rosto sem titubear com o pedido. Eles agora se despedem com a turnê "Reused Are F**king Dead - And This Time They Really Mean It", na Argentina e Chile, e os nosso amigos sul americanos que se cuidem porque não faltarão "hits" pros shows que virão.

Ovacionados pelos espectadores, coube a banda voltar e aplicar doses intravenosas de REV001 e a pesadíssima Pump The Brakes, fechando assim um ciclo de uma das bandas mais seminais dos últimos 35 anos no mundo. A força motriz de tudo isso, ainda segue sendo o HC/Punk, o respeito, a união, e juntos quebrar qualquer forma de sistema fajuto ou corrompido, o Refused cantou isso por décadas, e no mínimo esse legado vai ficar pra novas gerações, uma verdadeira aula.